*Por J.R.Guzzo
A democracia morreu no Brasil – se é que chegou a viver algum dia, pois qualquer exame clínico um pouco mais atento mostra que ela já nasceu morta em 22 de setembro de 1988, dia em que começou a valer a Constituição Federal que está em vigor e que é, em geral, considerado como seu marco zero.
Nasceu morta porque quem a escreveu pensou numa coisa só, com obsessão exemplar, desde a redação de sua primeira sílaba: como montar no Brasil um sistema de governo em que um grupo limitado de pessoas fica com 100% do direito legal de tomar decisões — sem ter de pagar jamais pelas consequências do que decide, é claro — e o resto da população fica sem influência prática nenhuma.
É exatamente o que vem acontecendo há quase 32 anos.
No papel, e nos tratados de ciência política, é o governo comandado pela vontade da maioria — e os votos da maioria podem perfeitamente colocar no governo, ou seja lá onde as decisões são tomadas, gente que não tem interesse algum em saber quanto você é livre ou não é.
Seu papel é unicamente obedecer às leis e regras que os donos do poder escrevem em benefício próprio, ou dos grupos a quem servem.
No Brasil de hoje não há uma coisa nem outra.
Não há democracia porque quem manda em tudo, faz mais de trinta anos, é uma minoria — a população só é chamada, de dois em dois anos, para votar em eleições nas quais um sistema viciado elege sempre os mesmos, com uma ou outra exceção que não muda nada.
Fechadas as urnas às 5 horas da tarde, todos são mandados de volta para casa e só voltam a abrir a boca dali a dois anos, para fazer a mesma coisa.
No meio-tempo, não mandam em absolutamente nada — sem crachá e autorização dos seguranças, não podem nem entrar nos lugares onde estão os que resolvem tudo.
Não há liberdade porque o cidadão só tem a opção de obedecer, esteja ou não de acordo com o que lhe mandam fazer.
O momento que o Brasil atravessa agora, com grande parte da população apavorada pelo medo de morrer por causa da covid-19, é exemplar dessa democracia que não vale nada.
Vamos aos testes práticos.
Passa pela cabeça de alguém, por exemplo, que as pessoas estejam de acordo que o Senado alugue por 350 mil reais por mês, sem concorrência, uma “sala VIP” no aeroporto de Brasília, para os senadores não correrem nenhum risco de ficar perto dos cidadãos?
É claro que ninguém está de acordo.
É claro, também, que ninguém pode fazer nada a respeito.
É tudo legal, porque eles escreveram leis dizendo que é legal — inclusive essa falta tão conveniente de concorrência pública, pois estamos num momento de “emergência” na saúde pública.
O que a maioria tem a dizer da recusa do Congresso em abrir mão de um centavo sequer dos bilhões que tem estocados nos fundos “Partidário e Eleitoral”, que roubaram legalmente dos impostos — através de leis que eles mesmos aprovaram?
E a liberdade, aí, como é que fica: alguém é livre, de verdade, para defender seu direito de opor-se a essa aberração?
Não se trata apenas de deputados e senadores.
Como pode haver democracia numa sociedade em que uma comunidade de talvez 25.000 indivíduos, os membros do Poder Judiciário em suas diversas camadas, tem direitos que os demais 200 milhões de brasileiros não têm — e se mantém, na vida real, acima das leis e da obrigação de cumpri-las?
É impossível, também, pensar em “estado de direito” quando a Justiça funciona como cúmplice integral em atos de delinquência do submundo político.
No caso dos “fundos”, é óbvio, deu razão ao Congresso — e proibiu seu uso em favor do combate à epidemia.
O país inteiro tem assistido, todos os dias, a demonstrações brutais de tirania por parte de 27 governadores, 5.500 prefeitos, suas polícias e seus fiscais.
Com o súbito poder que lhes foi conferido pela epidemia, e com a cumplicidade quase absoluta de juízes e integrantes do Ministério Público, puseram para fora todas as suas neuras ditatoriais.
É a lei que lhes permite isso — a lei que eles próprios, ou a classe política em geral, escreveram.
Os exemplos não acabam mais.
(noticiário), até o fim dos tempos, não serão suficientes para mostrar a soma de desastres que está acontecendo com as liberdades neste país.
Todo o poder de decisão foi dado a grupos muito bem definidos, pela malícia e esperteza de uma Constituição na qual há um número ilimitado de boas intenções e nenhum meio de realizá-las na prática.
Ali o cidadão tem direito a tudo — menos o de influir na própria vida e controlar, mesmo por alguns minutos, os que mandam nele.
Todos sabem quem são esses grupos.
Os altos servidores do Estado, as corporações, os grupos de interesse privado, os sindicatos, os criminosos ricos, os saqueadores do Erário, os que desfrutam de direitos que os demais não têm, os políticos — e por aí afora.
As leis são escritas para eles.
Você só paga.
“Eu prefiro um ladrão a um deputado”, diz Walter E. Williams, o economista conservador americano que há décadas devasta a hipocrisia da vida política mundial.
“O ladrão, em geral, o rouba uma vez só e vai embora.”
Os políticos, porém, estão aí para sempre.
É esse, justamente, nosso problema: enquanto quem mandar no Brasil for o condomínio descrito acima, não haverá nem liberdade real nem democracia efetiva.
O que vale é a manipulação periódica da multidão em eleições que já estão decididas, pelos vícios deliberados do sistema eleitoral, antes de o primeiro voto ser colocado na primeira urna.
O resultado concreto disso tudo aparece nas decisões alucinadas que são tomadas aqui como resultado do “funcionamento normal” das chamadas instituições democráticas.
“Como alguma coisa que é imoral, quando feita em particular, se torna moral quando feita coletivamente?”, pergunta Williams.
“Por acaso a legalidade confere moralidade a alguma coisa?
A escravidão era legal. O apartheid era legal. Os massacres feitos por Hitler, Stalin e Mao foram legais.”
No Brasil o Congresso é legal.
O STF é legal.
O aparelho do Estado é legal.
O que foi para o diabo é o senso moral — junto com a liberdade e a verdadeira democracia.”
*José Roberto Guzzo, mais conhecido como J.R. Guzzo, é um jornalista brasileiro, diretor editorial do grupo EXAME e colunista das revistas EXAME e VEJA, integrando ainda o Conselho Editorial da Abril.